terça-feira, 30 de novembro de 2010

Trabalho duro e bonecas feitas com peças de arado

_ Estas crianças não sabem brincar! Não se intertem com nada! Tem um mundo de brinquedos, bonecas, carrinhos... tempo livre para brincar e não brincam! No meu tempo não era assim. Ah! Se eu ia ter tempo de tá brincando!
Minha avó conta a sua infância para meus sobrinhos, os netos filhos do filho caçula dela. Há um pouco de ressentimento em sua voz, coisa normal após tantos anos de sofrimento! Sofrimento fruto de mágoas do passado e também criações do seu próprio pessimismo. Não é fácil pra ninguém ter crescido sem ter brincado, sem ter tido infância. Não é fácil ter feito sempre, sempre tudo do jeito que os outros esperavam que fosse feito e, ainda assim, se sentir incompleta. Porque quando se faz tudo o que os outros querem, agradando aos outros, quem se desagrada é a gente!
Uma infância de trabalho na lavoura junto com os pais, plantando e colhendo, capinando, ajudando a cuidar dos animais e da casa. Ter uma irmã sofrendo de doenças mentais e resolver que não iria se separar nem da mãe nem da irmã. Não haviam brinquedos, teve tempo que não tinha comida. Nos momentos de folga, peças velhas que não se usariam mais no arado eram o que viravam as bonecas da vó e das irmãs dela. 
Não havia tempo para estudar, as brincadeiras então... raramente existiam.
É interessante como as pessoas enfrentam de forma tão diferentes as coisas que acontecem nas suas vidas! Minha bisavó Elmira criou os filhos sozinha, ajudou a criar os netos, ficou junto com a filha doente até os últimos dias dela. Passou trabalho, passou fome. E não lembro dela carregada de pessimismo.
Minha avó já é mais dura, não com as pessoas, creio que ela seja dura consigo mesma. Tem uma grande seriedade com tudo. Com certeza fruto do sufocamento da sua infância. Ela teve nove filhos, alguns partos dificílimos, a maioria em casa! Ficou viúva cedo! Mas sua quietude vem de muito antes disso! Sua seriedade com tudo na vida vem de não ter tido tempo para brincar, não ter tido meninice.
Lembro de ficar depois da escola na casa dela, mas não lembro muito de vê-la conversando com as pessoas. Posso sentir o cheiro do risoto que fazia aos domingos, posso sentir o odor da casa e as paredes quentes da cozinha onde ficava o fogão a lenha. Mas lembro pouco dela conversando, rindo...
Hoje em dia ela fala bem mais. Tem vezes que fala tanto que parece que precisa se livrar de tudo aquilo dentro dela, tem que botar pra fora. Compreendo a maneira como ela vê as coisas, compreendo seus motivos de tristeza, já perdeu marido, filho, netos... Pensa incessantemente nos que estão longe, nos que estão sem trabalho, nos que dirigem, nos que andam nas ruas, nos que casaram, nos que tem filhos e em todos aqueles de quem gosta, filho dos  filhos dos filhos dos filhos... Sua cabeça não para, sempre com preocupações variadas. O sono não vem diante de tanta gente por quem pedir, com quem se preocupar. Há motivos, isto é certo! Mas há algo de melancólico e sofredor! Algo de que me falaram certa vez, que vem nos genes,  faz parte do DNA da gente que é misturado. Dizem que cada povo tem seu traço característico, alguns são alegres e falastrões como os italianos, outros sofredores como os portugueses. Minha avó tem um pouco de sangue português, pois embora tenha sido registrada com o sobrenome Nunes, é, na verdade, Oliveira.
Eu tenho um pouco desta melancolia, desta coisa que parece estar sempre tocando um fado de fundo musical. Também tocam boleros arrastados, a velha "Ronda" ou o "Folhetim". Só que comigo tem as batucadas e o Raulzito e todo um repertório que parece não ser o gosto musical de uma mesma pessoa tamanha a disparidade de estilos.
Olhando pra minha avó às vezes parece, que só tocam fados na vida dela. São poucos momentos de riso. Mas o que ela não sabe, não tem consciência é de que é uma vencedora. Ela apenas não acredita nisto!

PS.: Esta história é baseada na história de vida da minha avó, tem muito mais  para contar, este é um pequeno reconhecimento para ela que tem sim um história de vida linda. Não foi fácil, mas o mais importante é o proveito que se tira de tudo.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

"Nem sei como aguentei tudo isto"

Num cantinho da casa de repouso, nome pomposo para o verdadeiro fim a que servem, a pequenina senhora olhava tristemente para a rua, como a espera de alguém que estava certo de vir. Comecei a conversa após alguns instantes sentada a seu lado.
_Como a senhora está hoje?
_Minha filha, nem sei o que faço aqui ainda. Deus perdeu o caderno aonde estava anotado meu nome. Todos da família que tinham mais ou menos minha idade já se foram. Ficaram meus filhos e netos e sobrinhos... mas sou um estorvo pra eles, todos trabalham muito, não tem tempo para cuidar de mim...

A lágrima rolou mansinha pelo rosto marcado de rugas de dona Edith. Seus olhos não tem brilho, mesmo quando seu rosto sorri. Eu pergunto se ela quer dar uma caminhada pela casa, mas ela diz que está muito cansada e prefere conversar ali mesmo. Então ela me pergunta:
_Sabe que hoje sonhei com meu velho?
_É dona Edith? E como foi?
_Ele estava lindo, sorrindo pra mim na entrada da casa aonde morávamos. Então ele veio caminhando até a namoradeira onde eu estava sentada. Ajoelhou aos meus pés, segurou minha mão entre as dele...
_E então?
_Ah! Ele beijou minha mão. Lembro porque senti cócegas por causa do bigode. Sempre senti cócegas do bigode dele!  Aí ele passou uma das suas mãos sobre a minha e ficou segurando. Olhou nos meus olhos e me disse assim, "minha velha, não fica triste eu nunca te deixo só, nossos filhos estão em dívida contigo, mas logo-logo nós dois estaremos juntos, falta pouco".  Ele vai vir me buscar!
_ Ele disse isso?
_Não, ele não disse, mas eu sei. Mas não te preocupa filha, eu quero ir. Estou cansada de estar aqui. Nem sei como aguentei tudo isto pelo que passei na vida, não sei... Minha vida não foi nada fácil! Passei fome na minha infância. Era uma época de muita miséria, ninguém tinha comida, comia só quem  conseguia plantar alguma coisa. Trabalhei muito, lavei passei, cozinhei na casa dos outros, limpei chão, cuidei de criança. Então um dia, num restaurante que estava trabalhando conheci meu véio. Ah! Lembro bem demais daquele dia.

Falando isto foi a primeira vez que vi os olhos de dona Edith brilharem, foi a primeira vez que a vi viva. Ela foi contando como conheceu o marido e como foi difícil para ficarem juntos, pois a família dele se opunha por ela ser pobre. Mas ele insistiu. Tiveram cinco filhos, e nenhum deles vem visitá-la porque "são ocupados". Seus 20 netos não aparecem nunca! Mas ela sempre os desculpa quando ligam, pois ela é mãe, é vó e eles são tudo pra ela.

Ficou viúva numa época em que era bem difícil criar os filhos sendo sozinha. Dona Edith não se importou com as convenções sociais. E logo que pôde, mesmo com cinco crianças começou a trabalhar. Mesmo com a pensão do marido. Nunca mais casou. Desde os 40 anos reserva-se exclusivamente para seu marido. Mantém-se como na juventude, guardando se para o verdadeiro amor.
Nossas conversas são sempre sobre livros, filmes que gosta de assistir, mas nos últimos dias ela vem falando da sua história. E desde o sonho com seu esposo noto que ela vem ficando cada dia mais feliz. Seu olhar, antes disperso e apagado, agora exibe o brilho, que vemos nos olhos dos apaixonados.

Nesta manhã dona Edith me chamou a seu quarto. Fez com que eu sentasse em sua cama e disse:
_No sábado é meu aniversário, estarei completando 96 anos. Sorrindo completou, faltam só quatro p'rus cem, mas não chego lá não. Quero te pedir um favor filha, liga para meus filhos e meus netos, e pra minha irmã Carolina. Aqui tem um dinheirinho, acho que  dá pra comprar um bolo e uns salgadinhos. Ah! Compra também uns balões, compra lilás, minha cor favorita. Não esquece os refrigerantes e uma cidra. Traz também umas flores, como é o nome daquelas bem coloridas?
Fiquei olhando para ela com o dinheiro na mão.
_Aquelas que parecem margaridas grandes, sabe?
_Gérberas?
_Isto, traz umas gérberas. Diz pros meus filhos, noras e netos que eles precisam vir. Que é uma comemoração de família e todos devem vir, ah! marca as quatro da tarde.

Saí do quarto deixando dona Edith. Estava pronta para sair e fazer as compras que ela pediu. A tarde liguei para os filhos e a irmã. Todos ficaram certos de estar no sábado na casa de repouso. No dia marcado dona Edith estava radiante. Sua pele parecia estar muito mais saudável e até menos marcada pelas rugas.

Organizamos a sala onde seria feita a festinha e ela colocou, numa mesa próximo da cadeira onde estava sentada a fotografia do seu esposo. Como em muitos anos não via a casa de repouso estava em festa. Todos estavam alegres.
A primeira a chegar foi dona Carolina. Conversou durante bastante tempo com a irmã relembrando o passado e sorrindo das coisas todas que aprontou quando criança.

Aos poucos os filhos de dona Edith foram chegando com seus filhos e as namoradas dos filhos.
Todos riram muito, comeram, beberam, desculparam-se pela ausência e brindaram, com a cidra encomendaou a mim,  pela saúde de dona Edith.

Acabada a festa dona Edith levou uma gérbera e o retrato do seu amado de volta a seu quarto.
No meio da noite acordou com a presença do seu velho.
_Como foi a festa Edith?
_Ah! meu velho vieram todos, foi linda! Nunca na minha vida tinha tido um aniversário tão feliz!
Ele a pegou da mão e dançaram pelo quarto, como faziam na mocidade.

Dançaram, dançaram, dançaram,dançaram...

Na manhã seguinte a ausência foi notada por todos, já que era uma das primeiras, sempre, a acordar. Quando entrei no quarto dona Edith ainda estava deitada, parecia estar dormindo. Sobre o peito a fotografia e nos lábios um sorriso tranquilo. Ela havia se ido! Reencontrou seu amor.
No criado mudo uma carta para mim dizia:

"Não chore nem fique triste, minha ausência te dará saudade, tenho certeza, mas saiba que estou indo porque acabou meu tempo, estou feliz, fiz tudo que precisava fazer, criei filhos bons, vi meus netos... tive amigos maravilhosos. Agora vou ficar junto do meu velho, como prometeu ele veio, veio me buscar. Me vista com a roupa que usei no meu aniversário, nas minhas mãos quero apenas a aliança e a gérbera que esta no vaso ao lado da cama. Reza um pai nosso pela minha alma, pede luz pra o meu caminho, mas não chora. Se quiser, pode beijar meu rosto. Avisa a todos os meus, mas esta carta é só tua. Não te preocupa com o teu amor que ainda não apareceu, algo de muito bom esta no teu caminho, eu pude ver. Cuida de mim pela última vez com todo o carinho como sempre fizestes. E depois que eu for sepultada... quando sentires saudade, reza por mim. Um beijinho no teu coração, Edith".

Tudo foi feito como ela havia me pedido. Sua serenidade contagiou a todos e como se soubessem, ninguém chorou. Talvez tenham se envergonhado diante do sorriso da morta. E hoje toda vez que lembro dela, rezo um pai nosso. E lá se vão mais de 40 anos. Ela estava certa, tinha algo de muito bom no meu caminho!

PS.: Esta bem poderia ser a história de alguma idosa ou idoso que a gente conhece, mas não é, eu juntei muitos relatos que ouvi, sentimentos meus e de outros e deu nisso. É uma tentativa de deixar a veia literária fluir!

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Saudade dos tempos em que não se tinha pressa

Faz tanto tempo que não posto nada aqui! Sinto culpa e uma saudade enorme. Mas não tenho tido tempo. As ideias fervilham na minha mente, tantas histórias para contar... como correr contra o tempo?
Se bem que... a verdade é que cansei de correr. Não consigo mais encarar como normal toda esta correria das pessoas em busca sei-lá-de-quê! As pessoas correm em seus carros, buzinam no sinal, param na faixa, mas mal tu te afasta um milímetro da frente do carro e eles aceleram os automóveis e se vão fazendo tua roupa voar com o deslocamento do vento. Pedestres não conseguem esperar o farol abrir, mesmo que isto signifique proteger suas vidas, eles olham pra cima vendo que a luz verde não está acesa e descem as calçadas de forma perigosa. Quem chega no horário no trabalho sente, mesmo com folga de 5 minutos, que está atrasado! A cobrança é sufocante, tem muito para se fazer e tão pouco tempo! É preciso ser bem informado, é preciso estar nas redes sociais, trabalhar é imprescindível afinal é o que paga tuas contas e garante a bóia na mesa, tem que fazer exercícios, relacionar-se com as pessoas, ler bons livros, ir ao cinema, ao teatro, ficar com os filhos, visitar os parentes distantes e mais uma infinidade de verdades absolutas que a gente recebe por email. E vamos acelerando o nosso ritmo a ponto de sentir taquicardia no meio da tarde, morrendo de medo de que seja sinal de um enfarto, mas na verdade é das duas uma, criação da tua própria cabeça por causa da ansiedade decorrente de não conseguir cumprir todos os prazos que tu mesmo te deu, ou são gases. É, são gases, porque na volta com tanta coisa que precisas fazer na frente do computador tu acaba esquecendo de ir ao banheiro.
Só que eu não quero mais isto pra mim não. Vou voltar a dormir as 8h que preciso por dia, se não viro um bagaço! E o pior, não atino nada, a sinapse fica impossível! E vou dar, ainda, mais valor as coisas que gosto de fazer, minhas aulas de dança, escrever, ler, ver meus amigos, ficar com a minha família. Todas as outras verdades absolutas vou deixar pra lá. Nunca obedeci regras e nunca quis ser mais uma na multidão, sou do contra mesmo, vou contra a maré. Só não corro mais contra o tempo!