terça-feira, 28 de setembro de 2010

Obtuários do jornal

Alguns dias do mês fico relativamente sem ter o que fazer aqui no escritório. Aproveito este tempo para ler notícias de jornal, escrever nos blogs, ativar o cérebro com jogos e leituras. Geralmente isto ocorre pelo final do mês. Foi na manhã fria de hoje, com o vento empurrando as janelas que li a triste notícia da morte de um vizinho.  Não sei o seu sobrenome, tampouco aonde estava morando atualmente. Mas bastou ler o primeiro nome para ter certeza de que se tratava dele. Após ler as circunstâncias da morte, a idade, a localidade onde foi encontrado seu corpo e os possíveis motivos do crime a angústia da dúvida deu lugar a  tristeza de saber que tudo indicava ser ele.
Esqueci o tempo que faz que não o vejo. Desconheço seus hábitos, não faço ideia de como andava sua vida, mas lembro perfeitamente seus trejeitos juvenis. Minha memória trouxe a tona nossas pequenas brigas infantis na casa de uma outra vizinha que era babá dele. Não posso esquecer seus olhos verdes e os cabelos cacheados tipo anjo barroco que caiu quebrando a asa. Nunca fomos amigos, mas havia sim uma cumplicidade a qual não sei explicar e que ocorre vira e mexe entre mim e algumas pessoas. Quando isto acontece não são necessárias palavras, apenas o olhar revela tudo. Ele exercia sobre mim um grande fascínio. O jeito rebelde, a maneira displicente ou a vida marginal faziam com que a gente discutisse. No entanto, não eram suficientes para fazer com que nos repelíssemos.
Ele adorava assustar as pessoas usando apelidos estranhos ou complementos satãnicos para nomes falsos, como Demétrius, o filho do diabo. Mas, no fundo, bem no fundo podia-se perceber que toda a violência era fruto de uma carência afetiva muito grande.
Vou tratá-lo pelo pseudônimo que adotou,  Demétrius. Ele sempre foi uma criança difícil, daqueles guris inquietos e arteiros, que fazem coisas que até mesmo o capeta duvidaria. Perdeu o pai ainda criança e não tinham uma boa relação com o padrasto, com quem chegou as vias de fato inúmeras vezes. Numa de nossas poucas conversas, percebi abaixo de seu olho direito uma cicatriz. Para um guri marcas de tombos pelo corpo são como troféus de suas peraltices. Questionei como havia ocorrido, assim como perguntei olhando em seus olhos se ele fazia uso de drogas. Pode ser que ele tenha mentido, mas me contou tranquilamente que o corte tinha sido feito com a coronha de um revólver pelo padrasto na última briga que tiveram antes que ele saísse de casa e fosse morar com a avó. A mãe ficou do lado do novo marido, afinal de contas ele era um menino problema. Neste mesmo dia ele confessou o uso de drogas. Ao contrário do que qualquer pessoa, tomada de preconceitos pelo submundo dos dependentes químicos, ele não me ofereceu para experimentar. Ficou bravo quando perguntei sobre os efeitos e o que ele, particularmente sentia. Ele não quis me contar nada a respeito, apenas argumentou que para saber como era só usando e que eu não deveria usar.  Por observá-lo sabia aonde ele escondia seus baseados e o pó. Nunca comentei com ele ou com qualquer outra pessoa.
Mesmo aparentemente não tivéssemos nada em comum Demétrius se sentiu a vontade para me mostrar seus desenhos. Segundo ele apenas um hobby. Mas seu talento era nato! Traços firmes, limpos, precisos, perfeitos! Ele tinha uma pasta cheia dos seus trabalhos, material que poderia ser usado em tatuagens e ilustrações. Neste mesmo dia ele exibiu todo-todo sua tatuagem, um dragão vermelho com detalhes verdes do lado esquerdo do peito sobre o mamilo. Desenho feito por ele, claro.
As imagens são tão nítidas na minha cabeça que chego a me perguntar: tem certeza do que escreves? Crês de verdade que a cicatriz é sob o olho direito e a tatoo do lado esquerdo? O que te dá tanta confiança, o que te faz crer que esta é a verdade. Posso usar aqui de toda a licença poética que quiser, posso inventar coisas, posso fantasiar a vontade, não serei cobrada por ninguém. Não há compromisso de contar a história com tantos detalhes e precisões, apesar de basear os contos em fatos reais. É que as imagens e lembranças vem sem esforço.
Não preciso cerrar as pálpebras para lembrar do sorriso dele. Nem de como fugia do seu olhar e evitava pousar os meus olhos nos dele, sempre protelando o beijo, que parecia já estar programado. Mesmo sabendo que uma notícia como esta mexeria comigo, jamais imaginei que seria tanto.
Demétrius teve uma vida difícil por causa do envolvimento com as drogas. Morava aqui e ali. Andava com todo o tipo de gente. Vagava perdido pois tinha família mas era da rua. Levou uma vida marginal, a margem da família, da sociedade e até de mim mesma. Não é possível compreender ou dizer o que o levou ao que. Não tem como explicar se foi a carência familiar que o levou para a dependência ou se foram as drogas que o afastaram. O que sei é que ele foi se transformando, pelo menos é o que se podia ver por fora. Seus olhos já não brilhavam mais como antes, seu corpo não era limpo, as marcas aumentavam mais e mais, eram de expressão, de brigas, de tristeza, de solidão talvez. Seu mundo se fechou de tal maneira que não havia lugar para ele fora e não cabia mais ninguém dentro.
A sua morte violenta encerrou uma vida de sofrer, mesmo sem lembrar se ele alguma vez se queixou, via nos seus olhos uma melancolia profunda e aquela cumplicidade que só conseguimos ter com quem é capaz de nos olhar nos olhos e nos ver. Não há como isentar as drogas neste caso, já que elas podem ser o motivo da morte. Tampouco se pode dizer que ele é apenas vítima das circunstâncias. Sei que ele fez as escolhas que lhe pareceram melhores. Mas sei também, que não pode existir preconceito ou acusações sobre ele, afinal, de todas as pessoas atingidas pelas suas escolhas ele foi o mais prejudicado.
Desejo de coração que ele encontre a paz, que tenha felicidade e luz nos seus caminhos. E mesmo que seja tarde, o que acredito que não é, quero admitir que gostei muito dele e sempre tive esperança de que sua vida fosse melhor. Vai em paz!

Chutando o penico!

Muitas vezes o filho mais velho acaba levando as culpas pelas coisas que o irmão mais novo faz. Outras o irmão mais velho realmente é o culpado e noutras, ainda, por mais que ele tenha cuidado  do mais novo nada iria impedir que algo de errado saísse. A culpa é proporcional a diferença de idade entre os manos. Quanto mais idade tiver o primogênito mais castigado e xingado ele será se o caçula fizer alguma peraltice enquanto está sob sua guarda.
Uma prima minha tem duas meninas, uma por volta dos 16 anos de idade, completou o ensino médio e já  está cursando o técnico a caçula está com 2 aninhos. É óbvio que a mais velha acaba ficando responsável pela maninha vez por outra. Sabemos que entre as atividades pelos quais os irmãos mais velhos ficam responsáveis é limpar a bundinha dos irmãozinhos, ajudar a comer e reparar pra que eles não enfiem pregos nas tomadas, fujam para a rua ou subam na casa.
Minha prima tem toda uma estratégia para fazer com que a filha pequena se habitue a usar o famoso troninho. Sobre a banheira alta ela coloca o penico e põe a mocinha a fazer as necessidades. Por ser um local alto, sempre é necessário que alguém fique de olho na menina. Outro dia, a irmã mais velha fazia a ronda da menina. Num minuto de distração, a guriazinha não teve dúvida chutou o penico esparramando excrementos pela sala. A culpa ficou com a primogênita, a casa empestou e a limpeza sobrou pra mãe, claro.
Neste caso, apesar da raiva que dá de ter que limpar cocô do chão ou secar o xixi no tapete, o melhor é rir. Afinal de contas... criança tem cada uma!

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O mundo tem fome!

Algumas crianças seguem uma ideologia instintiva muito semelhante a da Mafalda, personagem do argentino Quino, questionando as pessoas e os motivos pelos quais estamos no mundo, porque há tanta diferença entre umas pessoas e outras e por aí vai... Outras simplesmente vivem a simplicidade de ser criança. Quando digo isto quero ressaltar que elas não vêem as dificuldades que nós, considerados adultos, colocamos nas coisas, que por vezes são muito, MUITO SIMPLES.
No geral a gurizada tem uma fase em que não quer comer, a alimentação acaba se resumindo as guloseimas que sabemos que elas não deveriam comer e que adoram. Ficam as mães de um lado querendo fazer com que os mandinhos* comam verduras, frutas e troquem o refri pelo suco. Nesta fase a briga na hora das refeições é certa, não há dúvidas.
Eu passei por esta fase lá pelos sete ou oito anos. Meu irmão do meio sempre foi comilão e pelo que me lembro nunca teve este problema, inclusive nos dias de hoje com 30 anos. Fastio nunca foi um problema para ele.
Já o caçula sempre foi magrelo, quase tísico. Com certeza um vento mais forte o carregaria para longe com facilidade. Ele foi, de nós os três, o que mais tempo esteve na fase de pouca comida. Ainda hoje ele fica longas horas sem se alimentar, motivo pelo qual seu estômago dói e não é culpa da fome e sim de uma gastrite, que já o levou ao pronto socorro. Quando ficava sozinho em casa por algum motivo seu prato certo era pipoca. A sua inapetência era motivo de muita briga na hora do almoço lá em casa. Mas ele sempre teve muita presença de espírito, característica que lhe é de grande valia hoje em dia, que causa gargalhada nos colegas do curso de Direito da FURG e que na infância causava irritação por parte dos mais velhos pelo atrevimento das palavras. Numa das brigas para ele comer foi que minha mãe toda paciente e carinhosa explicava pra ele como éramos privilegiados em ter comida em casa. Minha mãe argumentava com ele:
_ Come meu filho, tem um monte de criança na rua que não tem o que comer!
De pronto ele olhou para ela e emendou:
_ Então dá pra elas!
Fim de discussão!!! É esta capacidade que as crianças tem que eu admiro. Pois, se ele não quer comer e tem gente que tem fome  porque força-lo a comer e deixar os que tem apetite famintos?

* Aqui no sul, principalmente em Pelotas, além do famoso guri e guria costumamos usar para denominar os meninos e meninas, também utilizamos piá, mandinho ou mandinha.

Criança tem destas coisas!

Eu adoro crianças, elas são muito sábias e levam a vida numa simplicidade da qual nós, adultos, deveríamos nunca nos desfazer. Uma conhecida minha foi com a filha, na época por volta dos dois, três anos visitar uma amiga que recém tinha ganho nenem. A mamãe de primeira viagem estava empolgada e muito feliz apresentando o bebê as visitas. Helena observa o recém nascido, diz como é "monitinho" e sem rodeios lança a pergunta:
"_ E tu já sabe quem é o pai?".
Como sair de uma saia justa destas se não às gargalhadas?? Minha conhecida explicou constrangida e com o rosto em chamas que a pergunta da menina se dava por causa da novela. Parece piada, causo, mas a verdade é que esta história realmente aconteceu. A guriazinha hoje está na oitava série, com seus 14 anos por aí. Com certeza não lembra do mico que fez a mãe pagar. Mas criança é assim mesmo! Criança tem destas coisas!!!

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Um sorriso, uma saudade...

Dizem que a nossa memória mais perfeita é a olfativa. Concordo com isto, tem alguns cheiros que me levam lejos e lembro de coisas tão antigas que, se conscientemente tentasse lembrar não conseguiria. Mas tem pequenos detalhes no cotidiano da gente que nos fazem recordar situações impensadas. Um certo sorriso outra noite, por exemplo, me fez recordar uma saudade que há tempos não tinha. Não que ela não existisse ou fosse amena, pelo contrário. Ela sempre foi avassaladora e dolorida e justo por isto fui colocando muitas coisas sobre ela, outros sorrisos, outras brincadeiras, outras sensações, outras, outras, outras...
Tudo para não lembrar daquele sorriso branco em meio a barba negra. Acho que a saudade me fez calar todas as coisas que lembro dele. Fui me "resguardando" do sofrimento abafando as lembranças com mil tralhas, como quem guarda no quarto da bagunça todas as coisas das quais não quer se desfazer, mas que também não utiliza. Foi assim que numa noite um sorriso, também barbudo, me fez lembrar aquele em que eu não pensava. Ao contrário do que temia, descobrir-me pensando no sorriso do Miguel, primo que perdi há mais de 10 anos, não me fez sofrer, não doeu, não teve angústia. Apenas renasceu a saudade de dar um abraço, de ver o sorriso, de ouvi-lo me chamar de preta (aliás, o único que me chamava assim), de tomar uma cerveja ou caipira e dar risadas. Deu saudade dele me dizendo que eu devia deixar meus cabelos crescerem, porque com eles curtos eu estava parecendo uma mulher. Isto quando eu já tinha 18 anos, mas pra ele eu 'inda era criança.
Daí um sorriso, que vai dar saudade, fez lembrar a saudade de um sorriso que jamais será esquecido. E eu descobri que a saudade pode ser boa, apesar de representar a ausência.