A noite se fazia presente com o brilho suave da lua e a penumbra encobrindo rostos distantes. Os passos eram apressados para chegar a tempo ao mercado. Em meio a tantas faces desconhecidas encobertas pela sombra da noite um sorriso lhe pareceu familiar, talvez apenas simpático, quem sabe acolhedor...
O homem postou-se diante dela com o sorriso aberto, que apenas se desfez quando ele, cordialmente a cumprimentou.
_ Oi, como vai?
Rapidamente passou em sua mente o terrível medo dos desmemoriados, será que o conheço e não estou lembrando quem seja? Então responde timidamente, quase num sussurro. De tão grande a vergonha de não ter reconhecido o cidadão ela nem percebe que o homem se embala, como uma bailarina de caixa de música cujo imã está mal posicionado.
_Oi, vou bem e tu?
Esta era a deixa de que ele precisava para, ao mesmo tempo em que se embala para cá e para lá, soltar a questão:
_ Posso te falar da minha vida?
Neste momento ela percebe os passos do homem, dois pra lá, dois pra cá como na música da Elis.
Ela olha para o relógio e para o portão do mercado ainda aberto e vê que há pouco tempo para fazer suas compras. O homem segue embalando-se tal qual marinheiro que ainda não acostumou-se em terra e preserva em seu corpo o vai e vem das ondas do mar.
_Desculpe-me amigo, mas não poderei ouví-lo agora. Ao dizer isto segue em direção ao supermercado, deixando-o para trás.
Dias passaram-se e ela lembrava daquela pessoa, talvez um Forrest Gump da vida, alguém tão solitário e tão angustiado em si mesmo que sua companhia de todas as horas, a bebida não lhe bastava mais, era preciso conversar com outra pessoa, escutar uma voz diferente da sua e dos seus pensamentos. Era impossível não criar várias histórias, dar um nome tendo uma imaginação tão fértil como a dela. Seria mesmo aquele cara um morador de rua? As evidências não diziam isto! Suas roupas eram limpas, os calçados surrados por muitas caminhadas, os dentes eram brancos e a bolsa nas mãos parecia com aquelas frasqueiras que os jogadores usam para levar uniforme e chuteiras. Com certeza não era um morador de rua!
Não foram descartadas as ideias de tratar-se de um paciente psiquiátrico em busca da reintegração a sociedade. Tantas vezes viu pessoas que buscavam o carinho alheio para suprir a desatenção da família. Embora quisesse esquecer daquela pessoa aparentemente tão frágil a culpa de não ter dado atenção a ela fazia-lhe lembrar da pessoa. E se aquele momento fosse o último desabafo de um suicida, de alguém desesperado por uma palavra de conforto ou um olhar de compaixão?
Por várias vezes observou as pessoas no vai-e-vem das ruas na tentativa de encontrar o homem contando de sua vida a outras pessoas. Chegou a cogitar que aquele encontro havia sido fruto da sua imaginação. Vai saber tinha sonhado aquilo tudo, inclusive suas suposições.
Foi quando, numa noite fria de agosto, enquanto passava de ônibus pode ver o mesmo sujeito, com seu sorriso cativante na sua dança de bêbado a conversar com uma senhora. Outra vez não seria possível ouvir as histórias daquele homem, mas saber que ele não se tratava de um suicida foi tranquilizante. As ideias mirabolantes seguiram povoando sua mente até que um dia pudesse se deparar com aquele bailarino da caninha, com tempo para saber, afinal de contas, o que ele tem para falar da sua vida.
Foto: Google imagens
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