Algumas pessoas da minha infância, parentes distantes ou amigos da família, são lendários. E acabaram por agregar nas nossas falas íntimas muitas expressões e palavras que fazem referência a eles. A Santa é uma delas. Ela era cunhada do marido da minha tia Rosa.
Entre suas expressões mais famosas esta "aproveita véio!". Ela sempre dizia isto para o filho quando ia na casa da minha avó, quando oferecia água gelada, dizia para ele ir ao banheiro e arrematava a frase com o famoso "aproveita véio!". É porque nada disto tinha na sua humilde casa. Um chalé bem pobre numa rua do bairro (ou seria vila?) Jardim Europa, aonde ela morava com o marido Darci e o filho.
A gente costumava fugir um pouco dela, pois ela não costumava tomar muitos banhos e seu cheiro não era lá dos melhores. Mas era uma pessoa de um coração imenso! Ela chegava sempre com a intenção de tomar chimarrão, mas o nojinho que guardavam minhas tias pelo fato de ela não escovar os dentes as impedia de matear juntas. Minha tia inventava uma dor de estômago ou algo do tipo e entregava o mate pra Santa. Ela sempre foi muito carinhosa, sempre nos pedia beijos e cumprimentos. Meu primo alemão fugia o quanto podia, o outro, o preto ia e beijava a tia logo, sem frescuras.
Na minha casa quase toda a semana ela passava pedindo pão, comidas, roupas ou qualquer outra coisa para alimentar sua família. Não lembro, apesar de toda a pobreza em que vivia, de tê-la visto triste. E ainda que faça muitos anos de sua partida (e já fazia alguns que não a via) consigo lembrar muito bem dela. Ela era muito magra, pernas e braços muito finos. Seu rosto era cheio de rugas e a pele curtida do sol. O cabelo castanho escuro pelo ombro era mal cuidado e seco demonstrando o quanto fora maltratada pela vida. Morreu relativamente nova, ainda que sua aparência fosse de uma mulher bem mais velha.
Das histórias da Santa a mais comentada entre nossa família é a de um convite que fez a uma ex-patroa para que lhe visitasse. Numa tarde chegou ela lá em casa. Papo vai, papo vem ela pergunta pra minha mãe se ela não tinha "guilha" (por "guilha" entenda-se lista telefônica ou guia (= guilha) telefônico). E a mãe não entendia e eu louca pra rir, sem saber a que ela se referia. Até que ela diz:
_Mais guria! Tu tem telefone faz um tempão e não sabe o que é "guilha"?! "Guilha" pra ver o número dos telefones.
Aaaaahhhhh!!!!! Pois foi esta a nossa expressão! E mais uma meia dúzia de minutos até encontrar o nome da ex-patroa entre tantas famílias.
A Santa era uma pessoa muito desembaraçada! Sem nenhum constrangimento ou sentimento de baixa estima, falava com a patroa, mulher até de algumas posses (como dizem os escritores antigos se referindo às famílias abastadas) como uma de nós, de igual pra igual, sem esta de classes ou diferenças sociais!
Depois de muita conversa sentada no sofá lá de casa ela resolveu convidar a amiga pra visitá-la. O detalhe é que a mulher nem ideia fazia de onde é que residia a dona Santa. Mas em todo o seu desembaraço lá vai ela explicando logo que não há porque de ela não vir, pois chegar na casa dela é muito fácil. E foi então dando todas as explicações e referências que a ela parecia serem necessárias.
_ A senhora pega o ônibus Bom Jesus, desce sem ser numa parada na outra, pega a estrada e vai.
Não há como uma pessoa conseguir chegar na casa de quem quer que seja com tais indicações, não é mesmo?
Minha mãe disse pra Santa, mas a mulher não vai achar tua casa!
_ Como num vai?! É só descer ali no Lauriano, pega a estrada e pronto. É só perguntar aonde eu moro, todo mundo me conhece!
Ah! A ingenuidade das pessoas, a simplicidade daquele tempo onde vivíamos realmente numa aldeia. Numa tribo aonde todos se conheciam. Aonde bastava perguntar pros gurizinhos jogando bola no meio da rua com traves marcadas por chinelos de dedos onde quem quer que fosse morava e lá eles iam correndo, sem camisas e de pés descalços gritando o nome da vizinha e apontando pra casa. E apoiada nesta ideia Santa argumentava que a ex-patrona (como dizia) viesse lhe visitar, tomar um mate e um café.
Não tenho certeza, mas acho que ela nunca veio visitar a Santa! Mas nada disse mudou o modo feliz de viver da Santa. Sim, um modo feliz que só agora consigo ver. Toda a miséria que vivia, as dificuldades da vida e os mal tratos não mataram a vontade de viver daquela mulher lutadora. Uma personagem rica com todas as suas cores. E ainda que seu odor fosse dos mais fétidos havia nela um frescor de vida, de vontade de viver que nem o tempo mais difícil foi capaz de apagar. Nada do que sofreu conseguiu silenciar sua gargalhada. A única coisa farta naquele corpo!
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