quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Lembranças remotas

Entre as lembranças mais fortes da minha infância estão: o cheiro da comida da minha avó no domingo meio dia, minha bisa na frente da casa com o braço apoiado no muro, algumas visitas que fazia com minha mãe e minha tia ao bisavô no asilo e nos passeios de caçamba com meu tio Lauro. São lembranças vívidas as quais com o simples cerrar de olhos posso sentir a mesma emoção daqueles momentos.
Na verdade não lembro muito do vovô da minha mãe. Tenho lembranças que não são minhas, que vem das histórias contadas até hoje pela minha vó e pela mãe, como a mania de juntar grampos, prendedores de roupa, pentes, batons e toda a sorte de coisas encontradas pelas ruas.
O que lembro do biso é dos seus olhos azuis. Dois pedaços de oceano em meio a sua pele enrugada pelo tempo. Quando íamos visitá-lo, como sempre que saíamos éramos muito recomendados a não incomodar, a não desobedecer ou pedir qualquer coisa na rua, pois não se tinha dinheiro. O Biso, chamado pela minha vó de véio Luiz, morava no asilo, aonde, hoje em dia, dizem não moram mais o velhinhos que não tem condições, mas sim os idosos que podem pagar. Ele era cuidado por irmãs de caridade, que volta e meia passavam pelo quarto dele enquanto estávamos lá para ver se estava tudo bem.
Na verdade minha mãe e minha tia Rosa costumavam levar para ele além de algumas maçãs e bananas, cigarros e uma cachacinha. Estas duas, coisas que ele não deveria ingerir, é claro.
A sensação que tenho ao lembrar destes momentos é de ver uma porta imensa ao chegar no asilo. Aliás, detesto esta palavra, asilo. Para mim asilo é o mesmo que depósito de velhos. Sei que na verdade muitas vezes é o que ocorre. É indiferente o nome que se dá, casa de repouso, lar de idosos, o que se sabe é que muitos são deixados lá por não caberem mais na casa dos filhos e netos muito ocupados com a sua rotina corrida. Esta é uma sensação que me invade quando lembro de entrar naquela porta enorme. Eu tão pequenininha e aquele portal imenso que dava passagem ao mundo dos idosos, de pessoas tristes com o olhar parado, pedindo um carinho, uma visita, um olhar de amor.
Eu sempre fui e sou muito desconfiada. Não me aproximo de ninguém que não saiba quem é ou que não tenha observado de longe. Tenho uma boa intuição e a partir de algumas observações sei sim se a pessoa é boa ou não. E nos meus trinta e dois anos de vida posso dizer que me enganei muito pouco. Pra dizer a verdade não lembro de ter me enganado. Mas não sou infalível.
Porque digo isto? Porque meu biso não era uma pessoa com quem eu convivesse muito, como disse lembro pouco dele. Embora não tivesse tanta intimidade com ele lembro me sempre de sentar na cama ao seu lado, de ver bem de perto aqueles olhos profundos me fitando. Mesmo sem muita convivência sabia, desde a primeira vez que meus olhos cruzaram com os dele de que era um vôzinho legal.
Confesso que não tenho ideia de quantos anos tinha quando o biso morreu. Só sei que nunca mais atravessei aquela porta imensa do asilo, nem vi seus olhos azuis da cor do mar. Guardo a lembrança dele fumando no quarto aonde não podia e de ser repreendido pela irmã. Lembro de sua pele enrugada e suas mãos um pouco trêmulas. Mas acho que lembro o mais importante, recordo que, apesar do pouco convívio, voltava pra casa com o coração cheio de todo o carinho que ele nos dava.

Um comentário:

Luiz Carlos Vaz disse...

Maravilha de velho esse "biso". Parece que as gotas desse oceano respingaram em outra face...