Nunca tive vergonha da minha condição financeira, da minha família, da minha casa ou do lugar onde eu morava. Sempre soube que éramos pobres e usava de bom grado as roupas, sapatos e outras coisas que ganhava dos primos mais velhos ou de amigos com melhores condições financeiras. Mas tive na adolescência amigos que tinham vergonha da sua família, da casa ou do trabalho dos pais. As roupas de marca eram uma forma de tentar esconder uma casa com problemas estruturais. Um destes amigos foi embora muito cedo, não lembro ao certo a idade que ele tinha quando morreu, mas era no máximo 20 anos. Foi num acidente de carro na estrada entre Pelotas e Rio Grande.
O pai dele me chamava carinhosamente de "porqueira"! E nunca duvidei que fosse carinhoso. Ele falava assim principalmente quando eu e a Ana Paula íamos pra Bento ficar na volta deles enquanto trabalhavam. Nosso amigo tinha vergonha que outras pessoas o vissem ali fazendo o percurso do passeio das pôneis. Mas nós não só passávamos a tarde, como várias vezes íamos ao lado dele fazendo o percurso em volta a da praça. Ele era um cara bem inteligente, estudou na escola técnica e gostava de Guns n' roses. Gosto, aliás, pelo qual vivíamos brigando, afinal ele era do rock e nós até gostávamos de rock, mas estávamos na época das bandinhas água com açúcar, com carinhas bonitinhos e letras melosas.
Entrei apenas uma vez na casa dele, geralmente nos falávamos na esquina da casa dele, que era a metade do caminho entre a minha casa e a casa da Ana Paula. A gente costumava se visitar todos os sábados. Combinamos que um sábado eu iria a casa dela e no outro ela iria na minha. E na hora de ir embora uma acompanhava a outra até um pedaço, que virava até a outra esquina e quando víamos estávamos na esquina da casa da outra e precisávamos acompanhar pelo percurso de novo e de novo. No verão fazíamos isto até um pouquinho antes de anoitecer. O bairro apesar da fama era bem mais calmo também. Neste vai e vem sempre encontrávamos este amigo pelo caminho, ou chamávamos na frente da casa e pra ficarmos de papo ali na frente, falando abobrinhas, discutindo besteiras e dando muita risada. Ficávamos felizes juntos! Desta vez que entrei na casa deste amigo foi numa festa de aniversário dele, acho que era de 18 anos. Além da família só nós duas. E foi nesta única vez que aprendi uma das coisas mais importantes da minha vida. Aprendi que um lar é muito mais, mas muito mais mesmo que uma casa bem estruturada. Um lar é feito de gente que se ama e que mesmo sabendo que não é motivo de orgulho pro outro faz tudo pra ele estar e ser feliz. A casa deste meu amigo tinha problemas no telhado, tinha animais aqui e ali, tinha umas tranqueiras no caminho, alguns entulhos de obras inacabadas. Faltavam algumas coisas materiais, talvez coisas que fizessem falta para o conforto da família que trabalhava duro. Mas sobrava amor, tinha fartura na mesa, tinha muita alegria, tinhas corações abertos e gente acolhedora que te fazia sentir em casa, mesmo que aquela fosse a primeira vez que te vissem.
Eu sei que a maior luta deste meu amigo era pra superar as dificuldades financeiras, ter um lugar confortável pra morar. A vontade de mudar foi o que o levou a batalhar seus sonhos. Acho que quando ele desencarnou não estava morando em Pelotas, mas seguido vinha por causa do trabalho e da família. O desencarne foi um choque, foi estranho pois nesta época ainda temos uma noção de morte muito remota, é como se fôssemos imortais.
Escrevi este texto porque senti saudade daqueles tempos. Lembrei do nosso amigo, dos domingos na Bento, das risadas e dos planos de sermos famosos, ricos, bonitos e magros.
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