terça-feira, 23 de março de 2010

Memória emprestada

Tem lembranças e experiências que conto, que passo para os outros, mas que... não são minhas. Claro que digo quem contou ou escreveu tais lembranças. Tem uma que me causa uma comoção pela generosidade. Como já disse em outros posts a família da minha mãe sempre foi pobre e no passado ainda mais, chegando a passar certas privações e algumas necessidades. Nenhuma destas faltas chegou a fazer com que minha mãe ou meus tios e tias se tornassem adultos ressentidos pelo que passaram. Ao contrário, são todos pessoas generosas.
Minha avó foi criada na colônia de Pelotas, perto de onde é o Restaurante Grupelli, a colônia Maciel, por ali, imagino eu, pelas coisas que ela conta. Meu avô é do Rincão do Andrade. Quando meus avós eram noivos teve a Segunda Guerra Mundial e meu avô foi até a Itália como pracinha. De acordo com algumas fotos e o relato da vó Mália é possível que eu tenha um tio italiano, pois meu avô era muito namorador. Quem sabe fosse pelo nome, Dorocildo, que lembra doce, que surgisse o sucesso dele com a mulherada? Enfim... durante um grande período da infância da minha mãe meu avô foi o "cuidador do mato". Mato este localizado onde hoje é o bairro Dunas. Conforme contam, naquela época aquela região era toda mata, com poucas casas e deserta.
Deste mato existem várias histórias, da mulher de branco, do homem gigante, da mulher que foi obrigada a se mudar, pelo meu avô, depois de desencarnado. Num outro momento eu conto estas. A deste post é uma homenagem a minha tia Ieda, que é toda coração. Tem gente que é assim por natureza. É uma pessoa que é incapaz de ser rude com alguém, mesmo que a situação seja de conflito, não vê maldade nos outros e fazer uma maldade é impossível pra ela.
Minha mãe conta que quando elas eram pequenas, em idade de colégio, faltava muitas coisas, entre elas o caderno e até o lápis. O tapapó que deveriam usar eram divididos, assim como os chinelos, entre os que estudavam de manhã e os que iam a escola à tarde. A troca era feita para garantir que todos fossem a escola. Certa vez, conta minha mãe, que tinha um boi brabo solto no campo e minhas tias Ieda e Rosa estavam caminhando por lá. Não sei ao certo o que faziam, mas isso não importa porque o ato mais importante não se baseia no porquê elas estavam lá. E sim no ato altruísta que se seguiu. A tia Ieda estava de chinelos e a tia Rosa de pés descalços e andavam pelo mato. Foi quando o boi furioso surgiu. Elas deveriam correr para fugir dele, mas a tia Rosa não caminhava por causa das rosetas que cravavam em seus pés. Só que o perigo de ser morta pelo "boi sem coração" era real e presente. A tia Ieda não teve dúvida, talvez não tenha conseguido pensar nos seus próprios pés cravejados de rosetas ao fugir do boi, porque ela só conseguiu pensar que nada era mais importante do que fazer com que sua irmã saísse daquele perigo sã e salva. E se para isso fosse necessário ficar com os pés em chagas, caminhar sobre brasas, bem... isto não importava. (Acha isso melodramático leitor? Talvez porque não tenha visto uma pessoa ser atacada por um boi, ou vaca)Ela tirou os calçados e deu para que a tia Rosa pudesse correr dali.
Para mim é difícil entender o altruísmo de uma criança. Mas eu sou capaz de compreender o desespero que ela sentiu ao ver a irmã ameaçada pelo animal. Pois uma vez lá fora, no sítio dos meus pais a "vacona", como as crianças chamam a vaca que meu pai tem lá, se soltou e quase causou um acidente com as minhas sobrinhas Larissa e Amanda. O desespero foi tão grande que não consigo, até hoje, me lembrar daquele dia sem chorar.
As vezes eu me pego pensando no quanto eu queria ter esta generosidade. Talvez isto só seja possível porque elas tiveram que aprender desde muito cedo a cuidar uns dos outros, a dividir. Por isso cada um se tornou todo coração, cada um a seu jeito, com sua particularidade, mas todos muito mais coração do que qualquer outra coisa. Agradeço demais a oportunidade de conviver com cada um deles e sinto não ter conhecido o vô, sorte que sempre tem as histórias...

2 comentários:

Luiz Carlos Vaz disse...

Esses relatos de memórias estão ficando muito interessantes. Já pensou em juntar esses escritos num livro?

Léli disse...

Será? Tem umas histórias que escrevo chorando... esta foi uma, me comove muito. Vou pensar na ideia.