Dizem que as duas coisas mais importantes da vida, ou duas delas, a gente faz sozinha, que é nascer e morrer. Embora no nascimento tenha a mãe do lado de fora, o obstetra ou parteira e o pai fumando no corredor o esforço por sair, abrir os olhos e ver a luz é de quem está nascendo. É uma ação solitária, mas que é acompanhada por vários olhos e pensamentos que tornam este ato individual em uma emoção coletiva. O encontro do bebêzinho com a luz, o ar que enche os pulmões, o pulsar do coração, o choro é só o recém nascido que pode sentir em seu corpo, todo o restante da família que está fora é uma espécie de platéia aguardando o momento de festejar, de sorrir ou chorar de emoção.
A morte também é uma ação solitária. É o nosso encontro com nossos medos, é a revisão do nosso passado, de atitudes, de escolhas, do bem ou do mal que fizemos. É encarar o que fomos na terra, é um bocejo que nos leva para a vida eterna ou uma dor lancinante, insuportável contra a qual lutamos com todas as forças mas não podemos vencer. A morte é a hora da verdade, é o momento em que talvez pensemos "afinal o que fiz da minha vida, porque não disse a quem amava do meu amor?". Mas não há tempo! Penso que ao contrário do que possa parecer a morte não é o nascimento ao contrário. É o nascimento noutro lugar. Também há emoção e choro. Pode haver arrependimentos.
O que torna diferente do nascimento é que não haverá tempo para dizer o que se quer, para os pedidos de perdão, para desculpar mágoas e desfazer más impressões. Com certeza a luta tanto numa como noutra situação, em ambas se busca viver, se buscar o sopro da vida, a luz. No entanto, a morte traz a tristeza da despedida daqueles que nos precedem. É natural que quem tenha buscado durante a existência a solidão afastando parentes e amigos encontre a morte muito mais só.
O que penso é, que embora sejam momentos em que somos os únicos que podemos encarar o que vem, tanto numa quanto noutra situação, saber que teremos aqui alguém que irá nos abraçar na chegada ou que segurará nossa mão na partida torna-nos fortes e seguros para vir ou ir.
Ontem uma solidão profunda que pode ter sido desejada ou ter acontecido sem que a pessoa tenha tido consciência de que as coisas poderiam ser diferentes teve fim. Um fim triste! Algo de que todos nós familiares prevíamos de alguma forma. Uma partida sem despedida, um encontro com um corpo já inerte, sem chance de pedidos de perdão, sem sorriso amoroso. Sem alguém a quem dar a mão.
Eu sei que... embora não dê ou tenha dado a minha mãe preocupações comuns, coisas que os pais tem em relação ao filhos, sei que minha mãe teme que meu fim seja como este, um encontro totalmente solitário com a morte. Sem um filho à cabeceira, sem um irmão que me dê a mão no momento de partir, sem um olhar doce ou a palavra de um amigo que diga "tudo ficará bem, até logo".
O que posso dizer? Nenhuma solidão é desejada! Por mais que as atitudes sejam rudes e as palavras amargas tenho plena certeza e consciência de que ninguém escolhe estar tão só quanto ela esteve. Ter momentos consigo mesmo é importante demais para que possamos nos conhecer intimamente. Mas estar só não é ser só. Estar só é um instante. São momentos nos quais existe a certeza de que lá fora estão me aguardando. É a certeza, assim como no nascimento que ao olhar a luz em seguida enxergaremos o sorriso de nossa mãe que nos aconchegará no seu peito. É saber que no corredor está o pai e que mais tarde passaremos de colo-em-colo das tias. Estar só é por algum tempo.
A história da despedida de ontem parece ter caminhado conforme a escolha da minha tia. Quem olha de fora ou conhecia o seu gênio há de pensar ou dizer que as coisas aconteceram conforme a escolha dela. Ela teve a solidão desejada por ela. Mas com todas as divergências e controvérsias que possamos ter em relação a ela, a pouca convivência, o quase desconhecimento e a falta de afinidade como argumentos há um que não se pode refutar. Somos todos gente e como tal é sabido que esta buca por solidão, não por estar só alguns momentos, mas ficar sozinha o tempo todo, fechar-se em si é um pedido de ajuda silencioso. É impossível saber o que se passou com ela no tempo em que esteve reclusa em sua fortaleza. Agora talvez não venhamos a saber o que a tornou tão dura, o que a fez cobrar-se ou infringir a pena de ser só. Neste momento só se pode rezar... só se pode pedir perdão por não ter insistido, por ter cumprido o desejo que suas atitudes demonstraram.
A morte todos nós encararemos sozinhos. Alguns com tranquilidade e resignação, outros lutarão porque querem viver mais, ainda pode ter quem tenha revolta por ela ter vindo lhe buscar, outros ainda que chamam por ela. Cada um a seu modo terá um momento de solidão com ela, um cara-a-cara inevitável. No entanto, o momento de escolher ter alguém para segurar a mão é agora. Nossas escolhas e atitudes são o que determinam este momento. Eu espero verdade tenho a certeza, viu mãe, assim como foi no meu nascimento haverá algumas pessoas rezando por mim, já que vou morrer bem velhinha, lá por volta dos noventa anos (ou mais, já que a Larissa disse que irá dançar comigo a valsa dos meus 115 anos), com mais sobrinhos netos que já tenho. E além disso... sei que do lado de lá, mais uma vez, como num outro nascimento será teu rosto que irei encontrar, junto com o pai, as tias, a vó e bisavó numa algazarra das grandes.
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